domingo, 30 de março de 2008

Contra a Criminalização da Pobreza



UM 28 DE MARÇO REALMENTE INESQUECÍVEL


Na última sexta-feira, 28 de março, houve uma grande passeata pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em memória dos 40 anos da morte do estudante Edson Luís, assassinado brutalmente por um dos policiais capangas do governo militar. Para quem não sabe, o grande crime do estudante foi protestar por melhores condições do Calabouço, uma espécie de bandejão que atendia a estudantes secundaristas e universitários da época.

Após a passeata, fui levar minha companheira no ponto de ônibus, lá no "mergulhão" da Praça XV. Foi quando nos deparamos com uma cena para deleite de qualquer fascista: dois policiais militares espancando a socos e pontapés um menor, que se contorcia de dor pelo braço já quase quebrado. Abordamos os policiais tentando pedir para "pegarem mais leve", na vã expectativa de sermos ouvidos. Enquanto minha companheira, já muito nervosa, gritava em prantos, denunciando os maus tratos dos PMs, o que ouvimos foi apenas: "querem ir pra delegacia com ele também?".
Para terminar o espetáculo grotesco, um deles fez questão de voltar e tentar nos intimidar. Da forma mais agressiva que pôde, vociferou, em tom de ameaça, algo em torno disto: "Cidadão! Esse meliante que você está defendendo roubou uma menina aqui ontem e hoje assaltou outra pessoa. Antes de vir com hipocrisia (pois se ele tivesse assaltado você sua reação seria outra), não tente nos impedir de aplicar as medidas necessárias nesse caso, entendeu?"

Não reagi, não respondi, nem "bati boca". Não por medo, mas porque estava com ela. Penso muito antes de fazer qualquer coisa que possa causar mal a alguém querido. Depois que o policial foi embora, coloquei-a no ônibus e pensei: "Ele me chamou de cidadão, é isso que eu sou. Pago impostos, trabalho, estudo e sou honesto, não vou fugir como um rato, não vou deixar de andar onde eu quiser na cidade que amo por causa desses caras. Vou voltar por lá mesmo, pelo mesmo lugar de onde vim e se eles estiverem lá, que assim seja."
Para bem ou para mal, não estavam.

Caro policial, não estou escrevendo isso porque "estou doído por levar desaforo pra casa". Sou chargista, simplesmente espero que meu trabalho fale por mim. Acontece que essa questão vai para muito além disso. Como você possivelmente é daqueles que pensa que "bandido bom é bandido morto" - ou espancado, não cabe aqui avaliar se o menino era só um suspeito ou realmente roubou alguém, pois nos dois casos o procedimento da polícia não é este, até porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê seis medidas sócio-educativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e internação. Essas sim, são as "medidas necessárias". Onde está a referência a maus tratos e espancamento?


Não, senhor policial, esses meninos, esses "meliantes", não são a encarnação satânica das forças do mal no mundo. São sim, produto de uma sociedade doente, desigual e desumana, que por tantos motivos que nem dá para citar neste artigo, estão relegados à margem da sociedade. As pessoas os tratam como escória, como lixo vivo, como estrume humano. É dessa forma que são concebidos! Como alguém que desde o seu nascimento vive nessas condições vai ter consideração pelo próximo? De que forma esse menino vai sentir remorso após assaltar alguém, se muitas vezes nunca viu uma oportunidade diante dos olhos? Como esse menor vai ter respeito pela vida alheia, se não vê na própria vida valor algum?

Senhor policial, apesar de discordar de você, não dá para discutir contigo, até porque você deve acreditar realmente que estava fazendo a coisa certa. E se acredita, é porque alguém incutiu isso em você. Não é o senhor que eu teria que enfrentar. Quem dera! O senhor, meu caro policial, juntamente com o "meliante" que alegremente espancou, são apenas a "ponta do iceberg" de uma questão social muito mais séria e profunda, refletida na triste fala de um governador que afirma que "as favelas do Rio são fábricas de produzir marginais". Se assim for, a Assembléia Legislativa, o Congresso, o Senado e o Palácio do Planalto são fábricas de ponta!


O senhor, caro policial, não é mais que um veículo inconsciente para fazer cumprir uma mentalidade fascista chamada criminalização da pobreza. Criminalização esta expressa na ação da PM e do BOPE, reflexo de um sistema perverso que privilegia a elite econômica do país, em detrimento das classes menos favorecidas.
Nas favelas da vida, basta conversar com os moradores para saber que muita gente está sendo chacinada à queima-roupa (até mesmo aquelas que não têm envolvimento algum com o crime).
Por isso, senhor policial, não posso me calar diante das lágrimas derramadas por tantas mães que tiveram seus filhos inocentes ajoelhados e executados sumariamente com um tiro na nuca, por agentes da lei que, ao invés de cumprirem seu papel, se deleitam em torturar e maltratar os mais fracos.

O grande crime do estudante Edson Luís foi protestar por melhores condições de alimentação. E qual é o grande crime de muitos jovens negros pobres que estão morrendo silenciosamente nas favelas da vida? É serem o que são?




5 comentários:

Marco disse...

pobres inocentes, ok. marginais inocentes, já pode ser uma contradição em termos dependendo do sentido que marginal toma. só cuidado pra não escrever bandidos inocentes, pode pegar mal. ;-)

Diego Novaes disse...

É a concepção de marginal que vc sugere que a charge se propõe a debater. Etimologicamente, marginal é quem está "á margem de" - no caso, da sociedade. É a este marginal que me refiro. Culturalmente, no entanto, temos a associação do marginal com a figura do bandido, como vc disse. Mas nem todo marginal é bandido. E nem todo bandido é marginal.
E pode deixar que não foi nenhum descuido...

Unknown disse...

Realmente, um 28/03 inesquecível...
Ler esse relato ainda dói um pouco. Dói não só pelo fato de rememorar a cena em si, mas por ter a certeza que na sociedade atual não podemos fazer mais que ações pontuais, focalizadas. Não defendo que as políticas sociais (sejam elas destinadas a quaisquer setores) sejam feitas dessa forma, mas o que quero dizer é que "transformar a realidade social" é muito mais complexo e está muito além de ações individuais ou provenientes de pequenos grupos.
Sim, somos um pequeno grupo. Enquanto cobríamos as ruas do Centro do RJ de pessoas e tintas vermelhas, gritando palavras de ordem; um adolescente sofria com a violência policial. E isso com o respaldo da maioria da sociedade, que juga que um crime deve ser punido desta forma.
No momento em que presenciei o fato, estava a caminho de uma aula de Direitos Humanos (quanta ironia!). Teorizamos tanto, mas permanecemos imobilizados diante de uma cena como esta. O que fazer quando somos confrontados pela realidade? Onde aplicar tanta teoria (muito embora eu não esteja defendendo o seu abandono - não é essa a questão)?
Continuarei acreditando em uma sociedade outra e intervindo na realidade da forma mais lúcida possível, mas certa de que a "transformação social" que queremos está longe e de que fatos como este que presenciei estão cada vez mais naturalizados, ocorrendo todos os dias (enquanto estamos na sala de aula "teorizando" ou mesmo agora, enquanto digito este "comentário crítico").
Édson Luís, presente! "Jovem negro não identificado", presente!

Marcelo David disse...

Tanto o policial quanto o menino são produto dessa sociedade, "efeito colateral desse sistema", frase que ouvi não me lembro muito bem onde. E concordo plenamente quando o Diego diz que o policial acha realmente que está fazendo um bem pra sociedade.

São policiais mal treinados - ou treinados pro mal -, fruto de uma sociedade que defende a "política faroeste" e que, por exemplo, há uns meses atrás colocava um cidadão chamado Wagner Montes (é, ele mesmo) como líder nas pesquisas de opinião para ser nosso próximo prefeito.

Eu só não concordo com a expressão "marginais inocentes", por não achar que existam excluídos ou indivíduos "à margem de". Na sociedade eles estão incluídos, sendo discriminados e punidos por ela. Eles não se inserem é no processo produtivo, por vários fatores que não caberiam aqui. E é desse processo que eles estão à margem.

Realmente, é mais complexo do que imaginamos...

Vicente disse...

só pra vc saber que mais uma pessoa se deliciou com seu texto.